Enquanto a Lua Sangrar
Em uma noite de lua rubra no céu escuro, quando as sombras engoliam o brilho do mundo silenciando a luz, trazendo os mistérios que apenas a noite ousa guardar, segredos antigos, sussurros esquecidos e presenças que não pertencem inteiramente a este lado do véu. Nessa noite a escuridão ousou revelar.
Foi quando nos vimos pela primeira vez.
Era inverno, o vento lacerava a pele com dedos de vidro, eu caminhava rápido sentindo meu corpo trêmulo, a fina jaqueta jeans estava perdendo a batalha contra o frio, me abriguei sob uma marquise de loja, a chuva me alcançou. Vi teus olhos brilhantes na escuridão, vi teu corpo etéreo ganhar forma humana, estava nu, mas não sentia frio. Não aparentava ser feito da mesma matéria que eu, embora sua carne tremesse sob a luz escarlate, parecia tão humana, tão frágil. Seus olhos, porém, eram antigos, abismos onde séculos permaneciam a dormir. Havia algo em sua presença que parecia errado, um calor que não combinava com a noite gélida, como se a própria escuridão se dobrasse em torno de você, hesitante, o toquei.
E eu também te vi. Tão vulnerável sob a chuva, tão preso a um corpo que o frio castigava. Não entendia como alguém podia parecer tão frágil e, ao mesmo tempo, acender algo em mim, algo que não deveria sentir. Sua presença rasgava a névoa entre os mundos, um convite silencioso que eu não deveria aceitar. Mas não resisti. Por um instante, quis saber como seria existir ao seu lado, tocar a mortalidade e, talvez, provar do calor que há tanto tempo me era negado.
Aproximei-me sem medo, embora soubesse que o toque entre nossos mundos não deveria acontecer. O cheiro da chuva em sua pele me confundia, tão mortal, tão real. Perguntei-me o que havia em você que me puxava com tanta força. Eu, que nunca pertenci inteiramente a este lado, me vi desejando algo que não compreendia. Se eu tivesse um coração como o seu, ele teria acelerado naquela noite.
- Você sempre volta? Perguntei, sem saber se desejava a resposta.
- Enquanto a lua sangrar no céu, eu venho, respondeu, a voz fluindo como um segredo guardado entre as estrelas. Naquela noite, seu corpo assumiu a forma de um homem, braços longos, pele pálida, um sorriso que cortava como lâmina, mas já o vi voltar com outros rostos, outras curvas. Sempre belo, sempre impossível. E sempre, em cada forma, algo em você sussurrava perigo, como um convite que a razão implorava para recusar.
Nos encontros seguintes, você me falou sobre o limiar entre mundos, sobre o preço de existir em um lugar ao qual não se pertence. Tocava-me com dedos que pareciam arder e gelar ao mesmo tempo. Eu quis perguntar o que você era, mas temia a resposta. Às vezes, quando o silêncio nos envolvia, eu sentia em seus olhos a dor de algo esquecido, como se cada retorno cobrasse um preço que eu jamais compreenderia. Quis saber se um dia ficaria, mas sabia que não.
Você falava do outro lado como quem carrega o peso de mil noites solitárias. Cada palavra sua vinha carregada de saudade, não por um lugar, mas por algo que perdeu ao cruzar o véu. Ainda assim, voltava. Ainda assim, me procurava. Eu queria acreditar que havia algo em mim que te fazia querer permanecer, mas sabia que não era possível. Os laços que prendem seres como você não se desfazem facilmente.
Na terceira vez, você veio como mulher. Cabelos longos como fios de sombra, a pele cor de luar. Eu quis te prender ali, em meu tempo, em meu corpo. Em vão. Seus lábios traziam o gosto do esquecimento. Cada toque seu me marcava, e quando a lua voltava a ser prata, você se desfazia em névoa e silêncio. Amar você era um fardo e uma dádiva.
A cada eclipse, eu esperava. Sabia que não devia, mas esperava. Porque em sua presença eu era mais do que um corpo preso ao chão. Eu tocava algo além do real. Havia algo em seu toque que drenava mais do que calor. Era como se, a cada encontro, você levasse um pedaço de mim.
Eu tentava seguir em frente nos dias em que você não estava, mas o mundo perdia as cores. Nenhum toque me aquecia, nenhuma voz me preenchia. Era como se, ao te conhecer, eu tivesse perdido um pedaço de mim mesmo, um pedaço que só você podia devolver.
- E se eu quiser seguir você? Arrisquei numa noite em que a saudade pesava demais. Você me olhou com uma tristeza infinita.
- Se cruzar o limiar, não haverá volta. Sou do outro lado, e você... Tocou meu rosto, seu calor penetrando fundo na pele, mas dessa vez algo latejava sob sua pele, como um pulso antigo e voraz.
-Você ainda pertence ao amanhecer.
Mas meu coração já não pertencia a nada deste mundo.
- Na próxima Lua de Sangue, quando você voltar, sei o que escolherei. Queime-me em sua luz rubra. Leve-me para onde quer que as sombras chamem pelo seu nome. Eu já não temo atravessar. E se o preço do seu toque for a eternidade no outro lado, que assim seja. Prefiro me perder na escuridão com você a vagar neste mundo onde a luz já não me aquece. No seu próximo retorno, eu cruzarei o limiar. Eu te escolhi. Não há volta. Nem arrependimento, serei seu em qualquer mundo, em qualquer forma.
Ele ficou em silêncio. Por um instante, pensei que o tempo tivesse parado. O ar ficou denso, como se as palavras tivessem rasgado o véu entre o que é e o que não deve ser dito. Seus olhos brilharam com uma intensidade quase cruel, não de raiva, mas de verdade.
Ele se aproximou, e pela primeira vez, pareceu hesitar. As sombras ao redor vibraram como se reconhecessem o perigo da escolha que se desenhava. Seu corpo tremia levemente, mas não de frio, havia algo em sua alma que sofria.
— Não diga isso tão certo, sussurrou, com a voz carregada de um medo antigo, tão antigo quanto o fogo que molda o Inferno.
— Você não entende... o que eu sou. O que fui feito para ser.
Sua pele escureceu por um momento, como se algo dentro dele se agitasse. As pupilas se dilataram, engolindo a luz. E ali, diante de mim, não estava mais apenas o ser belo e enigmático, vi a verdade se desenhar sob sua forma.
Chifres curvos, apenas por um instante. Asas de carne e sombra que se abriram e se desfizeram no ar como fumaça. O hálito quente com o perfume da morte.
— Eu fui forjado no desejo dos outros, alimentado por sonhos impuros, condenado a tocar a carne sem nunca conhecê-la de verdade. Fui sombra que sussurra ao pé da cama, delírio que se deita e parte antes do amanhecer.
— Sou um íncubo. Um filho da noite. Um demônio do desejo. Ele abaixou o olhar, como se o peso dessas palavras queimasse.
— Fui feito para possuir, não para amar. O vento calou. Até a lua parecia escutar.
— Mas você… E então seus olhos voltaram a encontrar os meus, e neles não havia mais abismo, mas dor. Uma dor que pulsava como carne viva.
— Você não era para mim. Era para viver, amar, esquecer. Era para olhar para o céu e sentir calor. Mas eu... eu o vi. E algo dentro de mim, algo que deveria estar morto, respirou.
Ele se ajoelhou diante de mim, como se a própria eternidade curvasse os joelhos.
— Você me tocou. Com sua fragilidade, sua luz, sua solidão tão parecida com a minha. Eu te desejei como os homens me desejam, mas de um jeito que me fere, que me quebra, que me faz querer ser outra coisa. Um tremor percorreu o chão. A noite nos envolvia como um casulo.
— Eu sou do outro lado. Eu arrasto almas. E ainda assim... ao te encontrar, desejei ser arrastado. Por você. Ele tocou meu peito, a palma ardente contra meu coração.
O toque dele voltou, mais firme agora, como se a carne soubesse o que a alma temia. Suas mãos, antes hesitantes, pousaram em minha cintura, deslizavam pelo meu sexo como um sopro quente que incendiava por dentro. Um calor escuro, denso, espalhou-se sob minha pele, e meu corpo respondeu antes que eu pudesse compreender. Meus músculos tremiam. O ar parecia espesso. Cada parte minha que ele tocava ardia como se sua essência deixasse marcas invisíveis, não feridas, mas vestígios. Meu peito subia e descia rápido demais, minha visão escurecia. Eu sentia prazer... mas junto dele, algo me escapava, como se aquele êxtase sugasse parte de quem eu era.
— É isso o que sou… Ele sussurrou, quase sem voz, o rosto colado ao meu pescoço, a respiração quente, úmida.
— Cada desejo que satisfaço me alimenta... e também te leva. Ele me afastou, os olhos em agonia.
— Já sinto em você... a pele mais fina, o olhar mais opaco... seu corpo começa a esquecer o calor do mundo. Olhei para minhas mãos. Estavam trêmulas, como se algo nelas tivesse sido drenado. Parecia me tocar por dentro, sutil, mas real.
— Meu toque cura a solidão e deixa ferida. Dá prazer, mas rouba memória. Alimenta a alma... para depois devorá-la. Ele se virou, lutava contra si mesmo e sofria demais.
— Eu fui feito para isso. Para ser o alívio e a perda. O suspiro e o vazio. Não sei como amar sem ferir. Caminhei até ele. Toquei seu rosto, mesmo com a pele latejando sob meus dedos.
— Então que seja com dor. Que seja verdade.
Seus olhos se fecharam, e um gemido rouco escapou de seus lábios.
— Você me fere. E, ao mesmo tempo, me faz querer viver essa dor.
— Eu te amei. Contra minha natureza. Contra tudo que fui moldado para ser. E por isso eu te peço: Pense. Reflita antes de me seguir. Pois não há retorno. E mesmo o amor que me devora talvez não te salve da escuridão que habita em mim. Um silêncio cortante se estendeu entre nós.
— Mas se ainda assim, ao final, escolheres cruzar… Sua voz se tornou mais baixa, mais grave, quase um rosnar gentil…
— Então não serás meu prisioneiro. Nem meu alimento. Serás meu igual. E ergueu-se, olhos em brasa, corpo pulsando com algo novo, algo puro, que o dilacerava por dentro.
— Na próxima Lua de Sangue, se teu coração ainda me chamar, eu estarei à tua espera. E que os portões do outro lado se abram não com gritos, mas com promessas. Ele se afastou com passos que não tocavam o chão, dissipando-se em névoa. E a noite se fechou em meu sussurro:
— Seja minha perdição, e eu serei tua redenção.
E passou-se o tempo. E veio a Lua de Sangue. Mas, dessa vez, ele não veio. A ausência rasgou o tecido do real. Primeiro foi a tristeza, fria, cortante, úmida como paredes mofadas de um quarto esquecido. Depois, a raiva, vulcânica, pulsando nas veias como lava prestes a transbordar. E, por fim, o desespero.
Tomado pela ira, pelo abandono, golpeou o espelho do banheiro. O estilhaço devolveu seu reflexo em pedaços, como se o universo dissesse: “É isso que restou de você.”
Olhou nos próprios olhos, ou no que restava deles. Havia algo ali... algo que não era mais inteiro, que não era mais humano. A dor o transfigurava. Já não se reconhecia. Já não sabia se era ele ou apenas um eco do que fora.
Baixou o olhar para o próprio corpo nu. Magro. Debilitado. Um mapa de angústias traçado sobre a pele. As costelas pareciam cercas de um terreno abandonado, e a pele, um lençol gasto que mal escondia a ruína por baixo.
E então… escreveu. Ou talvez tenha apenas pensado. Talvez tenha sido só um sussurro perdido no vazio, mas, de algum modo, era a única coisa que ainda fazia sentido:
Meu amor,
Há em ti um abismo onde me lanço sem medo, mesmo sabendo que a queda me rasga em silêncio. És tormenta e abrigo, ferida e cura. Dói... Dói existir longe da tua sombra, mas sangra muito mais imaginar tua ausência definitiva, como quem perde a própria pele e segue nu pela eternidade.
Se és espinho, que me perfures. Se és fogo, que me consumas. Prefiro arder em tua presença do que me congelar na distância do que não és mais. Meu peito aprendeu que há dores que se suportam — e há ausências que simplesmente matam.
Fica. Mesmo que me doa. Mesmo que sejamos faca e carne, tempestade e vela. Fica, porque sem ti, até o ar me nega.
Com toda a dor que só o amor sabe carregar,
Serei para Sempre teu.
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