De Paixão e Concreto

 



Fortaleza, domingo de sol lascado, aquele bafo quente subindo do asfalto que parece que a cidade inteira tá fritando num óleo invisível de dendê. Eudes ali, engarrafado numa BMW, azul-celeste na avenida Beira-Mar. Brisa salgada batendo na cara e uma música meio gay no radio, Born this way da Lady Gaga, culpa da radio. E foi aí que ele apareceu.

Seu nome? Joel. Cinquenta e uns, cara de quem ralou na vida e nem teve tempo de parar pra reclamar. Corpo queimado de sol, não de bronzeador. Braço marcado de cimento e garra. Trabalhava ali perto, ajudante de obra no prédio vizinho ao condomínio onde Eudes morava. Aquele cara em toda sua simplicidade fisgou a atenção do playboy.

Entrou em casa, jogou as coisas no sofá e correu para a sacada. Ele tava consertando não sei o quê da fachada quando Eudes o viu esticando os músculos, corpo bruto, robusto suado. Do alto do seu tédio gourmet, jogou um "ei, tá com sede?" como quem joga uma isca no mar. Ele veio.

Primeiro foi o copo d’água. Depois o suco gelado. Depois a cerveja. Da cerveja pro papo, e do papo pro "entra aqui um pouco, pega esse ar-condicionado que tu merece, mermão". Ele relutou, tímido, como quem não sabe se o convite era real ou só zoeira do boy mimado. Mas entrou.

No começo, era só isso. Um cara cansado sentado no sofá, dizendo que tinha três filhos, uma mulher que já não dormia com ele fazia tempo e um joelho fodido de tanto carregar saco de cimento. Eudes ouvindo, meio entediado, meio hipnotizado por aquele sotaque arrastado, aquele suor cheirando a rua, nada de refinado, sem status ou perfume francês, somente o real. Até que Eudes foi até ele. Sem muito roteiro. Sem muito medo. Só aquela vontade besta de provocar o caos numa tarde idiota de domingo. Sentou ao lado, encostou o braço no dele, e ele olhou com aqueles olhos de quem já viu de tudo, menos isso.

— Tu é viado?Perguntou.

— Só quando me apaixono, respondeu .

Joel riu. Uma risada grave, cansada e cúmplice. E não sei se foi o álcool, o calor, ou a solidão dos dois, mas quando se beijou nele, ele não recuou. Deixou. Meio duro no começo, o corpo, não ele, mas logo foi cedendo, como argamassa quente.

O sexo foi cru. Sem música de fundo, sem velas aromáticas, sem pudor. Corpo contra corpo, pele contra suor. Eudes chupando cada cicatriz como se fosse medalha. Joel gemendo baixo, como quem não quer acordar os fantasmas da culpa. E quando gozaram, quase juntos, foi como explodir o silêncio do mundo numa gargalhada suja.

Depois, ele levantou e disse que precisava voltar pro serviço. Que o engenheiro era um filho da puta que vivia cortando do salário. Eudes quis rir, quis chorar, quis pedir que ficasse. Mas só acenou com a cabeça e ofereceu mais uma cerveja.

Mas Joel não pegou a cerveja. Só olhou. Um olhar meio pesado, meio distante, como quem sabe que aquele tipo de momento não se repete. Engoliu em seco, ajeitou a calça de pedreiro que ainda tava meio aberta, zíper meio torto, pau ainda latejando sob o jeans suado. Aquele silêncio denso de quem acabou de fazer merda, ou milagre. Nunca se sabe.

— Valeu aí, patrão... Soltou, quase num sussurro, como quem pede desculpa depois de gozar fora da hora.

Eudes ficou ali, sentado na beira do sofá, pelado, ainda com o gosto dele na boca. Aquela mistura de sal, cerveja, cimento e suor. Pegou o cigarro, acendeu, tragou fundo. Joel já saía pela porta, e por um segundo, só um segundo mesmo, Eudes quis levantar, puxar ele pelo braço, fazer o clichê de filme: "fica", "a gente pode tentar", "você não precisa voltar pra aquela merda de obra". Mas não disse nada. Faltou coragem. Faltava sempre.

Na segunda-feira, Joel apareceu na obra como se nada tivesse acontecido. Ou quase. Não olhou pra cima, não olhou pra sacada. Eudes olhava. Todo santo dia. Pegava o binóculo que o pai usava pra ver pássaro, agora aposentado na Suíça, e ficava ali espionando o peão com olhos de desejo e culpa. Joel suava igualzinho, subia andaime, carregava balde de massa, mas agora com a camisa sempre fechada até o pescoço, como quem cobre um pecado.

Eudes tentava se distrair. Ia pra academia, trepava com a personal, saía com uns boys do Grindr. Mas nada que tirasse o gosto de cimento da boca. Porque sexo bom mesmo era aquele que vinha com culpa, com risco, com a sensação de que você podia perder tudo por uma trepada.

Num sábado, chuvinha besta lavando a cidade, Joel apareceu de novo. Do nada. Camiseta molhada, pé descalço, cheiro de cachaça barata e coragem acumulada.

— A Mulher foi pra casa da irmã. Tô sozinho. Dá pra dormir aqui?

Eudes só abriu a porta e deixou ele entrar. Nenhuma palavra a mais. Tiraram as roupas como se estivessem tirando os próprios nomes. E dessa vez foi diferente. Joel quis dominar, meter como quem finca estaca, como quem marca território. Pegou Eudes pelas costas, jogou no sofá, mordeu, bateu, beijou como um homem que nunca teve espaço pra sentir prazer.

E Eudes gozou chorando. Não de dor. De alívio. Depois, deitados no chão da sala, os dois nus, Joel puxou o cigarro da boca dele e disse:

— Isso aqui não pode virar rotina, não. Vai dar merda.

— Já deu, respondeu Eudes, olhando o ventilador de teto girar como se fosse o mundo inteiro rodando e ele ali parado no centro, com o coração batendo no pau.

Joel dormiu ali mesmo, roncando baixo, cheirando a sexo e cimento. Eudes, acordado, passou a mão no corpo dele como quem decora o mapa de um território proibido. Sabia que, no outro dia, ele ia embora. Sabia que o mundo lá fora era cruel com dois caras como eles. Um playboy com desejos indecentes. Um pedreiro com família, um passado, e medo.

Mas naquela noite, pelo menos naquela noite, a cidade podia derreter embaixo deles. O mundo que se fodesse. Eles já tinham se fodido antes.

Uns dias depois, Eudes foi atrás. Inventou uma desculpa qualquer pra visitar a obra. Disse que queria saber do prazo, ver o apartamento modelo, tinha planos de comprar. Joel fingiu que não conhecia. Mas no fim da tarde, quando os peões começaram a deixar o canteiro, ele o puxou pra dentro de um dos banheiros inacabados do terceiro andar.

O cheiro de cimento fresco, poeira, cal e ferrugem. O barulho distante da cidade lá embaixo. Eudes encostado na parede áspera, Joel abrindo sua calça com pressa, como quem tem um intervalo curto entre o desejo e o desastre. A transa foi bruta, abafada, com o som das botas de segurança raspando no chão, mãos sujas agarrando a carne branca, gemidos presos na garganta pra não ecoar demais. Quando acabou, Joel olhou pra ele com os olhos em brasa e disse:

— Tu é doido”. Eudes sorriu.

— E tu gosta, respondeu. Saíram cada um por um canto. Cúmplices. Sujos. Vivos.

O terceiro encontro foi o último. Ou o penúltimo. Ou só mais um no meio do nada, Eudes não sabia mais contar.

Joel apareceu de novo, numa quarta-feira, fim de tarde, camisa regata colada no corpo, calça larga manchada de tinta e barro, olhos fundos de quem passou o dia inteiro empilhando pedra e silêncios. Não disse nada. Entrou. Trancou a porta com a mão calejada. Jogou as chaves no chão. Eudes só observou.

— Vou te comer hoje. Foi o que ele disse. Cru, direto, seco, com os olhos em brasa. E Eudes tremeu:

— Hoje não! Disse com um riso preso no canto da boca e olhar lascivo.

— Eu vou te foder até tu esquecer teu nome, Joel se surpreendeu com a própria coragem, ou sede, ou desespero.

Foi ali, no chão da cozinha, entre migalhas de pão, marcas de pés molhados e azulejo frio. Eudes ajoelhou e abriu a calça do pedreiro, sentindo o membro rijo, o engoliu, sugou, lambeu, cedendo, a boca ardendo em brasa. Joel gemeu a cada onda de prazer provocadas pela cede do outro. O playboy, lentamente, tirou a bermuda de grife olhando nos olhos do pedreiro e ficou de quatro, soltou um gemido surdo quando Joel passou a língua entre as nádegas pálidas. A carne era viva, quente, macia, cheirando a hidratante caro. E ele lambeu como se procurasse redenção. Eudes gemeu alto quando Joel meteu dois dedos de uma vez. Quase gritou. Mas ficou. Firme. Rijo. O pau dele, duro, roçando o chão, babando sem toque.

— Mete logo, porra, disse, com voz embargada.

E Joel obedeceu. Entrou com força. Corpo contra corpo, pele contra tijolo, uma batida suja de carne que ecoava na cozinha branca. Cada estocada era um pedido de desculpa, um pedido de amor, um pedido de mais. E Eudes dizia “vai” e “mais” e “assim” como quem reza. Como quem sangra por dentro. Gozaram. Joel primeiro, espalhando o esperma nas costas e nas nádegas de Eudes, nos próprios dedos. Eudes logo depois. Sentou em cima de Joel que meteu fundo, mordendo o ombro dele, suando em bicas, ofegante, tremendo. Depois ficaram ali, deitados no frio, ofegantes, um silêncio pesado como concreto.

Joel acendeu um cigarro e jogou a bituca na pia. Limpou-se em um pano de pratos, vestiu a calça, devagar, sem olhar nos olhos de Eudes. Pegou as chaves do chão.

— Tu sabe que isso aqui não tem futuro, né?

Eudes não respondeu. Só acenou com a cabeça. Como quem entende tudo. Ou finge que entende. Joel saiu. A porta bateu com um sopro quente vindo da rua. Ele ficou ali, pelado, no chão da cozinha. O pau mole, o coração duro. Sentindo a porra secar nas costas.

No dia seguinte, Joel não apareceu na obra. Nem no outro. Nem no outro. Mas Eudes continuou olhando da sacada. Esperando. Sempre esperando. Como quem ainda acredita que, um dia, o cimento volta pra casa.



Comentários

Postagens mais visitadas