A Tragédia do Quarto 1313

 Chovia naquela manhã de terça-feira, como se o céu insistisse em ser cúmplice daquilo que nunca seria dito. Hassan atravessou a portaria do prédio cinzento com os cabelos ainda úmidos, carregando consigo não só o cheiro da chuva, mas também o peso invisível de um desejo que, há meses, fingia não existir.

No quarto andar, o cheiro de café requentado misturava-se ao aroma morno da rotina. Era ali que ele encontrava, não exatamente abrigo, mas um tipo de conforto torto, onde a ausência de palavras dizia mais do que qualquer conversa.

Gael já estava no lugar de sempre. Impecável. A camisa branca contrastava com os braços bronzeados e fortes, expostos pelas mangas arregaçadas. Seu silêncio era ritualístico, quase uma defesa contra tudo aquilo que o mundo poderia arrancar. Os olhos, no entanto, nunca aprenderam a mentir.

— Bom dia, disse Hassan, rouco, como quem pede licença para existir.

Gael respondeu apenas com um aceno. Mas naquele aceno havia um sorriso que nunca se completava, como se algo o puxasse de volta antes de se tornar inteiro. Sempre foi assim. Sempre seria assim.

O que os unia jamais foi nomeado. Brotou no acaso de uma sala de capacitação, cresceu nos silêncios partilhados, alimentou-se dos olhares que duravam um segundo a mais do que o permitido. Existia no espaço entre um toque acidental e um afastamento brusco. Era amor, ou algo que se parecia muito com amor, disfarçado de casualidade. Mas amar, para eles, era uma sentença. Um risco constante. Uma guerra travada em silêncio.

O mundo lá fora era cruel. Nas esquinas que chamavam de lar, olhares se transformavam em lâminas, e o simples deslizar de um gesto mais macio poderia se converter em sentença, em repulsa, em exílio. Homens como eles aprendiam cedo que desejar podia custar caro. A paixão, com seu jeito traiçoeiro, misturava-se ao medo como veneno na água. E o que poderia ser abrigo, tornava-se prisão.

O elevador lotado, certo dia, os obrigou a encostar corpos. Um gesto tão corriqueiro para o mundo, mas tão devastador para eles. As costas de Gael roçaram o peito de Hassan, e aquele breve contato incendiou tudo por dentro. A pulsação acelerada, o cheiro da pele, o calor que atravessava tecidos e regras. E, no entanto, ao som frio do elevador apitando, tudo se desfez no mesmo instante. Desceram em silêncio, como sempre. Como se nada tivesse acontecido.

Mas tinha acontecido. Sempre acontecia. E, talvez, essa fosse a maldição: saber que o amor estava ali, ao alcance da mão, e ainda assim, ser forçado a fingir que não.

À noite, os dois, em suas respectivas solidões, enfrentavam o mesmo inimigo: a ausência que não se preenche. Hassan apertava o travesseiro, respirando fundo, queria gritar a sua paixão, queria estar mergulhado no cheiro de Gael, mas o seu amar precisava ser dividido e nunca seria aceito.

Do outro lado da cidade, Gael cerrava os olhos, sufocado pela memória do toque que não ousou se concretizar, da boca que não pôde provar. O amor, ali, se diluía em um jogo cruel de proximidade e negação. O desejo era uma faca de dois gumes: aquecia e feria.

Para Gael, viver aquele amor era como caminhar diariamente sobre cacos de vidro. Por trás da postura firme, do sorriso contido e da elegância meticulosa, havia um homem dilacerado por conflitos internos que remontavam à infância, às primeiras vezes em que percebeu que seu desejo não cabia no mundo que lhe ensinaram. Amava Hassan com uma intensidade que o assustava, não apenas pelo desejo, mas pela possibilidade de ser visto, de ser vulnerável, de entregar-se sem garantias.

Naquele escritório, entre planilhas e cafés frios, o acaso insistia em testá-los. Uma troca de olhares mais demorada. Uma mão que, por um fio de segundo, quase encontrou a outra. Uma confissão que subia pela garganta e morria na boca. Sempre havia algo, um olhar externo, uma voz no corredor, um medo, que interrompia, que puxava os dois de volta para a realidade.

Quando Gael, enfim, ergueu a mão, quase tocando seu rosto, um grito do mundo os arrancou daquele instante. E o que poderia ser redenção virou frustração, dor, exílio dentro do próprio corpo.

O amor deles não era feito de flores, nem de finais felizes. Era feito de resistência, de silêncio, de noites mal dormidas e travesseiros úmidos. Era um amor que existia apenas no intervalo entre o querer e o não poder. E, por isso mesmo, carregava tanto a beleza quanto a tragédia.

Mas, uma certa noite vestia-se de cetim negro, e a lua, oculta sob véus de nuvens, parecia cúmplice do pecado que se anunciava. Os dois foram escalados para uma viagem a fim de fechar uma grande encomenda, ótima comissão para ambos e perfeita situação para viverem o amor que por tanto tempo estava sufocado.

Gael e Hassan encontraram-se na estação de trem, viajaram em classe econômica, sentados lado a lado, mas observados por mil olhos estranhos. A viagem foi uma travessia de silêncios e desejos não ditos, um jogo perigoso de olhares que se esbarravam, fugiam e, vez ou outra, se encontravam como quem desafia o abismo.

O vagão rangia a cada curva, as janelas sujas refletiam mais seus rostos do que a paisagem que passava apressada. Entre eles, uma distância mínima, a linha invisível entre o permitido e o proibido. As mãos quase se tocavam sobre os joelhos, os dedos tremiam como se conduzissem corrente elétrica, mas nenhuma ousadia era suficiente para romper o muro erguido pelo olhar vigilante dos outros passageiros.

O cheiro do couro velho dos bancos misturava-se ao perfume discreto que Hassan usava, e Gael, por vezes, fechava os olhos, fingindo dormir, só para sorver aquele aroma e imaginar, por segundos, o que viria depois. O balanço do trem parecia acompanhar o pulsar acelerado dos dois, e cada solavanco fazia os ombros se encostarem, denunciando o desejo que tentavam, em vão, disfarçar. Lá fora, o mundo deslizava, indiferente. Lá dentro, dois homens viajavam não apenas rumo ao destino marcado, mas ao ponto de encontro de seus desejos e sem retorno.

Hospedaram-se em um pequeno hotel, próximo da estação. O quarto 1313, no terceiro andar, no fim de um estreito corredor, onde o cheiro da madeira antiga misturou-se ao perfume da pele suada, do desejo represado.

Os olhares, primeiro, demorados, conectados, em seguida foram as carícias, por tanto tempo represadas. Não havia mais espaço para palavras. Só o som abafado das respirações e o sussurro do vento cruzando frestas.

Hassan encostou Gael contra a parede úmida, e seus lábios buscaram os dele como quem busca salvação, ou perdição. Línguas dançaram uma valsa úmida, faminta, desesperada. As mãos, trêmulas, arrastavam-se pelos contornos do outro, arrancando camadas de tecido e pudor. Os dedos de Hassan deslizaram pela curva do ventre de Gael, desenhando trilhas invisíveis, até que os corpos se encontraram nus, pele sobre pele, ardendo como se o mundo fosse terminar naquela madrugada.

Gael, tomado por um misto de culpa e prazer, segurou Hassan pelos quadris, apertando-o com força, como quem quer eternizar aquele instante. As bocas percorriam pescoços, ombros, costas, até que os gemidos se misturaram ao ranger da cama antiga. Os corpos se fundiram em movimentos ritmados, lentos no começo, ferozes depois, num compasso que alternava delicadeza e selvageria. Os olhos de ambos, ora fechados, ora vidrados, anunciavam a vertigem do gozo que se aproximava.

Quando o ápice os atravessou, foi como se o universo inteiro se rasgasse. Um grito contido, um tremor que reverberou dos pés à espinha, fazendo o mundo desaparecer, por um segundo, só havia eles, suspensos no abismo do prazer. O silêncio que veio depois não era paz, era prenúncio. Hassan encarou Gael deitado, ainda ofegante, com os lábios entreabertos e o corpo marcado por beijos, arranhões e mordidas. A beleza daquele corpo, agora vulnerável, parecia mais perigosa que qualquer veneno.

O pavor lhe atravessou a espinha:

—E se ela descobrir? E se tudo desmoronar?

Levantou-se, nu, tateando a necessaire sobre o criado-mudo até encontrar o punhal antigo que sempre esteve ali, esquecido um presente do avô. O metal frio parecia tremer em suas mãos suadas.

Gael sorriu, sem perceber, puxando Hassan de volta para si.

Fica... Sussurrou, os olhos semicerrados.

Mas o que veio não foi um beijo. Foi o golpe. Rápido. Seco. Brutal. A lâmina entrou entre as costelas, rasgando carne, perfurando pulmão. Gael arquejou, seus olhos se arregalaram, mais em incredulidade que em dor. Tentou falar, mas só saiu um fio de sangue pelos lábios. Hassan, tomado por um frenesi de desespero e culpa, cravou o punhal novamente, e de novo, e mais uma vez, até que o corpo tremesse, depois amolecesse, e então... silêncio absoluto.

O sangue corria quente, formando poças sob o corpo inerte. E ali, onde antes os gemidos do prazer preenchiam as paredes, agora só restava o som sufocado do choro de Hassan, um pranto histérico, misturado a soluços e à consciência de que, ao tentar enterrar o próprio desejo, enterrava também o pouco que lhe restava de humanidade. Catatônico recitava uma pequena poesia repetidas vezes:

— Te quis como nunca quis a vida. Tua alma era luz. Fiquei com a tua sombra, tu, seguiste a aurora. Me calei. Tu não olhaste para trás.

A lua, enfim, rompeu as nuvens. E sua luz prateada iluminou, impiedosa, a cena onde o amor e a morte haviam, mais uma vez, se confundido.



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